100 discos, uma cidade imaginária: Aguardela transforma música em literatura e quadrinhos

Projeto de Raphael Salimena e Daniel Lopes cria universo fictício onde capas de álbuns contam a história de um lugar movido a sons, memórias e mistérios

Entre prédios apinhados, praias tranquilas e montanhas misteriosas, existe uma cidade onde a música é o idioma universal: Aguardela. Desde a chegada da cantora Dorinha, em 1950, o local se consolidou como um polo cultural, reunindo artistas, gêneros e linhagens musicais que atravessam gerações. O curioso é que, embora soe mais real do que muitas capitais da música, Aguardela nunca existiu — é uma criação coletiva do cartunista Raphael Salimena, conhecido pela tira Linha do Trem, e do editor e colecionador de LPs Daniel Lopes, cofundador da Pipoca & Nanquim.

O resultado é o livro 100 Discos para Conhecer Aguardela, lançado em formato quadrado do tamanho de um LP, com capa dura e 228 páginas coloridas. Misturando quadrinhos, literatura experimental e design gráfico, a obra apresenta 100 capas e contracapas fictícias, mas tão convincentes quanto qualquer clássico da discografia mundial. Cada arte revela fragmentos da história local: das trovoadas de Madame Oneide às verdades do rapper Vidraça, passando pela irreverência da banda Selvagens da Madrugada. Entre sinopses, setlists, letras e créditos, surgem narrativas maiores — guerras de gravadoras, intrigas familiares, desastres sobrenaturais — compondo um quebra-cabeça que torna a cidade mais viva a cada página.

A proposta nasceu de uma paixão em comum entre os autores: música, quadrinhos e literatura. “Quando você lê os encartes de discos do Bob Dylan, percebe muito da vida dele sem precisar de uma biografia tradicional. Tem lacunas, poesia, silêncio e até mentiras. É essa sensação que quisemos recriar”, explica Daniel Lopes. Ele e Salimena partiram da ideia de um mockumentary, uma ficção contada como se fosse documentário, criando um catálogo que também é uma carta de amor à música.

O livro ainda traz prefácio de Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, que gravou uma faixa inédita inspirada no universo de Aguardela chamada “Dora”. Para os autores, esse diálogo entre real e imaginário é parte essencial da experiência. Embora ainda não existam planos concretos de transformar os discos fictícios em álbuns reais, os dois já receberam composições espontâneas de leitores que tentaram recriar as músicas descritas. “É muito lindo ver isso acontecendo. Afinal, a música norteia absolutamente tudo nesse livro”, completa Lopes.

Com obras como Vagabundos no Espaço e coletâneas premiadas da Linha do Trem, Raphael Salimena já havia explorado os limites entre humor, ficção e crítica social. Agora, ao lado de Lopes — conhecido por sua trajetória no Pipoca & Nanquim e sua paixão pela música brasileira —, ele amplia esse repertório criando uma cidade onde cada disco inventado é também uma peça de literatura. Aguardela é, afinal, um lugar para ser ouvido com os olhos.