Há pelo menos um século, os sons da América Hispânica, como a conhecemos, se bifurcam em infinitas possibilidades. Ao abrir seu mapa musical, partindo do extremo México em direção aos rincões do Chile, o ouvinte ganha a possibilidade de conhecer, empiricamente, as razões pelas quais nomes como Julieta Venegas, Lila Downs, Celia Cruz, Andrea Echeverri, entre outras, se consagraram como porta-vozes de um continente — ainda que preservando as particularidades de cada obra e contexto.
As mesmas bênçãos que recaíram sobre elas, em um passado nem tão distante, agora dão espaço a nomes desta geração que você provavelmente ainda está a ponto de descobrir. Não menos interessantes em suas propostas, que dialogam com linguagens vibrantes e contemporâneas, as artistas da vez tomam para si mais do que o microfone responsável por projetar suas vozes: superlativas, elas estão no controle da própria narrativa, que se escreve diante das lentes de todos. A seguir, você confere três nomes que ainda não são tão conhecidos no Brasil, mas que já deveriam estar no seu radar.
iLe
Tendo entre seus colaboradores nomes como Natalia Lafourcade, Mon Laferte e a banda feminina de mariachis Flor de Toloache, a cantora e compositora porto-riquenha iLe vem construindo um percurso que equilibra, na mesma mão, fragilidades e uma postura belicosa. Em meio à Bad Bunny mania, seu trabalho soa quase como um farol para quem, nesse apagão provocado pela popularidade do colega, busca na ilha referências menos óbvias.
Com três LPs no currículo, Ileana Cabra Joglar — como foi batizada — costuma evocar referências tradicionais da música popular latino-americana para criar sons tão políticos quanto carregados de frescor. É justamente essa fusão que a consagrou ao lançar o disco Almadura (2019), seu melhor trabalho até aqui. Após ganhar projeção com boleros e bugalus, iLe construiu uma narrativa que enlaça seus sentimentos às injustiças sociopolíticas cometidas em Porto Rico.
Ao cantar sobre ressentimento na faixa Odio, por exemplo, busca recordar o massacre do Cerro Maravilla, ocorrido em 1978. Mais do que isso, explora a potencialidade da bomba, gênero musical marcado pela percussão e que tem em sua raiz os escravizados africanos levados à ilha no século XVII. Outros destaques para quem busca conhecê-la são Contra
Todo e Ñe Ñe Ñe, hinos de liberdade que se posicionam contra o silenciamento, as disputas territoriais e as dívidas que ainda assombram a ilha, fomentando catástrofes dos mais variados estilos. Tudo isso se articula demarcando sua condição de mulher e o desejo de criar poesias que se esquivam de promover ataques frontais aos Estados Unidos, personificados através do monstro do colonialismo.
Juliana
Aos 27 anos, sorte a sua não ser primo da colombiana Juliana Velázquez: ela é uma dessas revelações que já tem na estante um Grammy Latino. Conforme relatou à Forbes Colombia em entrevista recente, quando foi à cidade de Las Vegas para disputar o troféu, sequer tinha recursos para custear uma passagem — realidade bem diferente do presente, quando chega a convocar 14 mil pessoas para lotar uma das arenas Movistar espalhadas pela América Latina, esta em Bogotá.
Na estrada com o espetáculo La Pista, baseado no álbum homônimo e que é definido por sua autora como a primeira telenovela musical da cena latino-americana, Velasquez mescla a estética dos clássicos televisivos dos anos 1990 à dança e à celebração do amor. Ambientado no bar Buenavista durante a noite de ano novo, o projeto vem dividido em capítulos que exploram emoções universais e se entrega a gêneros como salsa, vallenato, reguetón e funk brasileiro.
Nos videoclipes, que acompanham a maioria das faixas, a artista se revela uma verdadeira showoman, provando para o público latino-americano que tudo é possível para uma artista local, ainda que em algum momento se esbarre com a hegemonia pop de estadunidenses como Sabrina Carpenter, hoje o modelo ideal.
Cazzu
Uma das cantoras argentinas de maior projeção no presente, Cazzu (Julieta Cazzuchelli) nasceu na província de Jujuy, famosa por suas paisagens paradisíacas e pela tradição folclórica. A experiência, que desencadeou uma série de preconceitos aos quais teve que enfrentar ao se mudar para a capital, Buenos Aires, acabou refletida na música.
Decepcionada com a cena de cumbia, onde fez suas primeiras tentativas para se tornar artista, não só se encontrou no trap como o revolucionou, transformando-o de um estilo marginal em algo absolutamente popular na Argentina. A porta de entrada foi sua mixtape Maldade$ (2017), que chamou atenção de criadores como Bizarrap e abriu espaço para que outras mulheres também encontrassem no gênero uma forma de expressão.
Em suas letras — que mais tarde também serviram como deixa para as discussões do livro Perreo, una revolución, ainda inédito em português —, o público encontra com frequência uma subversão das imagens de castidade associadas ao feminino, bem como das expectativas atribuídas aos gêneros.
No recente Latinaje (2025), cada faixa se apoia em um gênero diferente: da música tropical à copla argentina, passando pelo funk brasileiro. Entre experimentos passionais, Cazzu mantém o discurso coerente e firme, sempre com os dois pés no chão. Cabe ressaltar neste percurso sua colaboração com o rapper cearense WIU em Una Loca Enamorada, que reforça seu trânsito entre mercados e prova o quanto sua voz hoje é central para a música latino-americana contemporânea.