Essenciais Musicalidade: Marina Lima – Fullgás

Primeira apresentação do Fab Four clássico aconteceu dois anos após o nascimento dos Beatles, em agosto de 1962

A frase “você me abre seus braços e a gente faz um país”, emblemática na sequência de versos que encadeia toda a musicalidade da década de 1980, haveria de marcar uma geração. Tais dizeres, de autoria da dupla Marina Lima e Antônio Cícero — leia-se, a cantora que fez do irmão, poeta e intelectual, um dos maiores letristas da música popular brasileira — expõem a força da fervura política que vivia o Brasil de então. Ao dar título ao álbum Fullgás (1984), encapsulava um manifesto do amor e da liberdade que ansiavam esta nação, pulsante e latino-americana, recém-saída de uma ditadura militar.

Entre tudo o que poderia caber dentro e fora da literalidade que abarca estes dois sentimentos, tão simples e ao mesmo tempo tão complexos, Marina buscou dar vazão ao desejo. Embora não se pretenda panfletário, seu LP, lançado apenas um ano antes da abertura política, é um retrato de transformações densas e que se refletem de imediato na ficha técnica.

Mais pop do que qualquer um dos outros quatro discos que a autora já tinha lançado, Fullgás passeia por entre uma lista de compositores do rock nacional e internacional em ascensão, como Lulu Santos. Por si só já exalaria frescor. Indo além, acena para cancioneiros mais clássicos da Itália e dos Estados Unidos, em um reflexo de andanças. Calcada nessa postura eclética é que se desvela, pouco a pouco, o interesse da dupla em lançar aos céus, como se projetando luzes de um farol, questões urgentes da cultura e da sociedade, a começar pelas pautas de gênero e sexualidade.

Isso acontece, por exemplo, em “Mesmo que seja eu”, canção dos amigos Roberto e Erasmo Carlos, interpretada por Marina sob um eu-lírico feminino. Ainda no lado A, o amor e o erotismo ganham tração em “Ensaios de amor” e “Pra sempre e mais um dia”, espécie de registros de uma devoção apaixonada em que magia e prazer são consagrados como o ápice da euforia. Já “Pé na tábua”, versão de Cícero e Sergio de Souza para o clássico “Ordinary pain”, de Stevie Wonder, reconstrói a faixa original em arranjos que valorizam a modernidade da obra de Lima, feita de coragem e paixão — mesma tônica de “Mais uma vez”.

https://www.youtube.com/watch?v=CN-M1exPDY

Funcionando como uma espécie de interlúdio, o poema “Cícero e Marina”, tão belo quanto autofágico em sua estrutura, encontra na figura bíblica da cobra — seria ela de duas cabeças? — o entrelaçamento perfeito dos irmãos, que se declaram entre jogos sonoros e se espelham um no outro, como rimas perfeitas. Em 2025, após a morte do poeta, acabou formando um dos momentos mais emocionantes do show celebrativo “Rota 69”, conduzido pela própria Marina, às vésperas de completar 70 anos.

Pouco a pouco, o desejo e a névoa da hipnose romântica seguem na jornada de Fullgás dando espaço aos dissabores da solidão e da espera imaginativa. “Veneno”, versão de Polacci adaptada do italiano por Nelson Motta, funciona como uma das melhores baladas do repertório da autora em um flerte acachapante, aliando-se aos sentimentos expressos em “Mesmo se o vento levou”. Nesta canção, o destaque está no uso da estética pop, alinhada a interjeições e a uma justaposição eletrônica que mirava no que havia de mais moderno à época.

Sua parceria com Lobão, iniciada um disco antes, foi retomada em “Me chama”, outro hit radiofônico apegado à perfeição da fórmula. O roqueiro, incapaz de lapidar o amadurecimento de sua obra e figura pública com a mesma tônica dos irmãos Cícero e Marina, também aparece nos créditos de “Nosso estilo”, responsável por encerrar a obra como um retrato veloz dos anseios políticos. “Nossa lei não é a lei dos outros / pra nós, o mundo tá lento / demais / e esses caretas ficam mais e mais banais / nosso estilo não tem nostalgia”, canta Marina, acenando para o obscurantismo da censura. Estava aí a deixa perfeita para o ouvinte mergulhar em seu manifesto, que mesmo sem tomar um caminho real, ia de encontro ao novo. Ainda vai.