Pouco mais de 16 anos separam os dois lançamentos do duo de rappers Clipse. Nesse tempo, os Estados Unidos viram três presidentes diferentes e momentos históricos do calibre de uma pandemia, Black Lives Matter e, pelo menos, duas grandes recessões. A música de lá para cá passou pelo fim da era dos CDs, o período do MP3 e chegou ao streaming. Tudo mudou, mas o poder lírico e a importância do discurso da dupla Pusha T e Malice permanece grande em 2025 como era em 2009.
Clipse lançou o disco Let God Sort Em Out após um longo período de antecipação por parte do público e dos próprios rappers que participaram de podcasts; projetos musicais, como Colors e NPR Tiny Desk; e se mantiveram bastante ativos nas redes sociais. A recepção foi bastante relevante e o álbum, que parecia ser mais voltado para comunidade dos amantes de hip-hop, acabou furando certas bolhas e chegou a ser comentado no mainstream, principalmente por conta da nova onda da cultura da diss track
Prática comum desde os primórdios do rap, as chamadas diss são faixas que atacam, de forma explícita ou velada, outros artistas. O álbum do Clipse é cheio de críticas à cena atual do hip-hop. No entanto, ninguém é citado nominalmente. O que não evitou de outros artistas se sentirem afetados seja pelas músicas ou declarações de Pusha e Malice durante as agendas de entrevistas.
O caso mais chamativo foi o de Travis Scott, que fez várias falas públicas atacando Pusha T e disponibilizou o álbum Jackboys 2 pouco tempo depois na intenção de ofuscar o lançamento do Clipse. E conseguiu, uma vez que o trabalho de Scott já é um dos mais ouvidos do ano e levou o trapper ao cargo de segundo artista de hip-hop mais escutado da história do Spotify. No disco, Travis, inclusive, ataca Pusha T de forma menos velada.
Porém, essa história do ataque a outros rappers ganhou muito mais tração por conta de especulações do público. Nomes como Jay-Z, Kanye West, J.Cole, Rick Ross e até Tyler The Creator, presente como participação especial no álbum na música “P.O.V.”, foram levantados em discussões de fãs nas redes sociais. Esse tipo de análise ficou cada vez mais presente por conta da intensa troca de ataques entre Drake e Kendrick Lamar em 2024. Lamar que está no álbum do Clipse como uma boa adição de versos na excelente “Chains & Whips”.
Os chamados featurings, ou feats, chamam atenção em Let God Sort Em Out. Além de Tyler e Kendrick, nomes como Stove God Cooks, The-Dream, Ab‑Liva e Nas cantam e rimam no disco. Os maiores destaques são Pharrell Williams, que assina como produtor em mais da metade das faixas do álbum, e John Legend, que entoa um lindo refrão acompanhado de um coro em “Birds Don’t Sing” — uma das melhores faixas de abertura de 2025 até o momento.
Toda essa beleza que começa na faixa inicial faz um contraponto às críticas em todo o novo trabalho da dupla. Pusha T e Malice têm atualmente 48 e 52 anos, respectivamente, e não tem mais a urgência jovem de apenas atacar, apesar de manterem uma certa rebeldia lírica. Let God Sort Em Out é um disco também sobre perdas, luto, fé e legado.
Malice não empunhava um microfone desde a separação da dupla, logo após o lançamento de Til the Casket Drops em 2009, e se dedicou durante todos esses anos à religião cristã. Enquanto Pusha T continuou firme na música tendo feito alguns álbuns de destaque pelo caminho. O disco é, portanto, um reencontro de dois amigos com trajetórias diferentes, que, por conta das circunstâncias do mundo atual, se sentiram compelidos a voltar a contar uma história juntos.
Dessa forma, o álbum carrega o peso de mais de uma década e meia de opiniões, críticas e sentimentos de velhos amigos. Uma reunião que poderia ficar em um jantar, mas que foi transformada em um manifesto para um público sedento por novidade, mas que também gostaria de ver a continuidade do projeto.
Musicalmente, o disco tem tanto o som dos novos tempos, quanto a levada do que é tratado como “old school” no hip-hop. São beats complexos e inovadores, mas que claramente beberam da fonte de pessoas que já estão no meio do rap há muitos anos. A dualidade de nomes clássicos e recentes nos feats também está presente no aspecto sonoro. Às vezes parece um arranjo sofisticado vindo do jazz rap, outras a batida de um gangsta rap dos velhos tempos.
Em um meio em que surgem talentos jovens todos os dias, é preciso manter os olhos e ouvidos abertos para os que já dominam a arte há algum tempo. Clipse demonstra maturidade, vivência e uma atenção especial com o mundo que os cerca. O frescor do novo está muito mais presente neste disco do que em trabalhos de rappers muito mais “atuais” no mercado. A dupla mostra que é necessário ouvir a voz da experiência em tempos como os atuais.