Como conta o próprio Caetano Veloso no livro Sobre as letras (2003), seus trabalhos no disco homônimo de 1987 já tinham começado quando o músico estadunidense Arto Lindsay chegou com a proposta de gravar um projeto inédito. Um ano mais tarde, os dois, na companhia do também produtor Peter Sherer, deram vida a Estrangeiro (1989), aquele que seria o último disco do cantor brasileiro nos anos 1980. Formada por dez canções, a obra soa como um dardo de modernidade lançado em direção à década seguinte.
Na tentativa de impulsionar procedimentos tropicalistas mundo afora, Lindsay quis construir junto ao brasileiro uma narrativa que evocasse suas influências pessoais de nossa música. Vem daí a justificativa de Caetano para batizar o todo, construído ao redor de um só substantivo, reverente. Concebido como um de seus trabalhos mais audaciosos, ao menos no que diz respeito às composições — todas de sua autoria, exceto Meia lua inteira, de Carlinhos Brown —, Estrangeiro chegou ao público nos formatos CD e LP trazendo gravações feitas em Nova York.
O ato de abertura, que antecede outros nove capítulos, reúne um emaranhado de referências, nomes e impressões filosóficas sobrepostas a uma base de piano e percussão. Irretocável ainda para os dias atuais, a letra da faixa título é uma ode ao Brasil e às contradições. Se a capa traz a fotografia de uma maquete feita pelo cenógrafo Hélio Eichbauer para a peça O rei da vela, de Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo saudoso Zé Celso Martinez Corrêa, seu conteúdo a desdobra.
Da menção a falas reacionárias que se entrelaçam à diversidade de pensamentos sobre um mesmo lugar, o autor passa em direção a Rai das cores, canção inquieta na mesma proporção em que despojada, antecedente de Branquinha. Neste clássico cheio de predileção e ainda assim pouco explorado em turnês, Veloso dá seguimento à sua verborrágica costura de palavras enquanto se dedica, em sua máxima instância, à esposa Paula Lavigne.
Soberana, a percussão abre caminho outra vez para Os outros românticos, faixa ímpar entre suas criações. Ao versar sobre nossos antepassados em distintas eras, o artista traça anacronias, justapondo anseios, saberes e tempos ancestrais à realidade convulsória de um país do terceiro mundo. Bilíngue, a faixa desemboca em Jasper, registro em inglês que, subsequente, institui um novo capítulo de sua relação com os idiomas, naturalmente associada ao exílio que o levou a uma temporada londrina, no fim dos anos 1960.
A beleza das paixões pede licença em seguida para ser a guia de composições como Este amor e Outro retrato, ainda que seus destinatários sejam distintos. Na primeira, composta para a ex-esposa Dedé Gadelha, Veloso encontra na pele vermelha dos indígenas siboney, que habitavam a ilha de Cuba antes dos espanhóis colonizadores, a tônica para falar do romantismo. Já na seguinte, o pernambucano João Cabral de Melo Neto foi a força motriz para uma declaração de devoção à figura e à obra do poeta.
O arremate fica por conta de Etc., em que aspira sob o ritmo do violão o retorno das brisas românticas, e Genipapo absoluto, um aceno saudoso à cidade de Santo Amaro da Purificação e aos próprios pais. Imerso em memórias, ele se recorda do processo de fazer licor de jenipapo com seu José Teles, prensando a fruta em um gesto de cumplicidade, e se reconhece na mãe, endereçando a ela “sua voz”. Aqui, o cantor não apenas se encontra na figura de Dona Canô, mas também expõe um lado feminino inerente a todos os homens — prova da grandeza de suas leituras de mundo, mantenedoras de uma mente aberta e em constante transformação.