A disputa sobre as origens de Carlos Gardel, o maior ícone do tango, é um dos capítulos mais curiosos e persistentes da história cultural do Cone Sul. Segundo reportagem da revista Piauí, em Montevidéu, estudiosos e aficionados realizam jornadas anuais para defender a tese de que Gardel nasceu no Uruguai, em Tacuarembó, e não em Toulouse, na França — versão tradicionalmente defendida pela Argentina e aceita por grande parte da historiografia oficial.
Essa rivalidade ultrapassa o campo da pesquisa biográfica e se tornou uma questão de identidade nacional. Do lado argentino, prevalece o argumento de que Gardel era filho da francesa Berta Gardés, e que se naturalizou argentino ao se firmar artisticamente em Buenos Aires. Já os uruguaios sustentam que Gardel era fruto de uma relação incestuosa do coronel Carlos Escayola com sua afilhada, e que teria vivido parte da infância em Tacuarembó antes de migrar. A divergência não é apenas histórica: ela reflete a disputa simbólica entre dois países vizinhos, cuja rivalidade é acentuada também no futebol, na política e na cultura popular.
A reportagem mostra como esse embate mobiliza até hoje pesquisadores, como a argentina Martina Iñiguez, que desafia a tese francesa ao apontar supostas fraudes em documentos e diferenças físicas em registros fotográficos. Há também teorias paralelas sobre a morte de Gardel no acidente aéreo de 1935, que somam camadas de mistério à sua trajetória. Nesse sentido, discutir onde nasceu o cantor é mais do que um detalhe biográfico: é decidir quem tem o direito de reivindicar sua herança simbólica e cultural.
O que está em jogo é o próprio peso do tango na construção das identidades nacionais. Para os argentinos, Gardel encarna a voz eterna de Buenos Aires; para os uruguaios, é prova de que o pequeno país também foi berço de uma das figuras mais universais da música latina. A ausência de consenso permite que Gardel continue a ser, como o próprio tango, um território de disputas, memórias e paixões. E talvez resida aí o fascínio de sua lenda: ser, ao mesmo tempo, patrimônio coletivo e objeto de uma rivalidade sem fim.