No Brasil, onde passou cerca de um mês, já no fim do ano de 2024, a cantora e compositora franco-caribenha Adi Oasis buscou meios de mergulhar em nossa cultura. Radicada em Nova York, ela, que hoje desponta como uma das grandes expoentes de gêneros como soul, funk e R&B, aproveitou a curta temporada no país para viver uma imersão criativa. Hospedada no tradicional Chez Georges, retiro modernista situado no coração do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, fez seus dias brilharem como se vivesse um epílogo do disco Lotus Glow (2023). Assim é que, entre um pôr do sol e outro, compôs e gravou faixas como “Cheirinho”.
Lançada no primeiro dia do mês de agosto, a novidade é fruto de uma colaboração com o duo carioca YOÙN, que também a incentivou a cantar versos em português. Guiada pelo violão enquanto uma delicada conjuntura de vocais e batidas se incorpora, a música avança na tentativa de reproduzir, ainda que em outra linguagem, o efeito dos primeiros raios de sol que cortam a manhã. Ou mesmo a sensação de observar a própria filha, que engatinhava entre cabos e almofadas durante as sessões criativas, naquela que seria a melhor definição da presença de um perfume familiar. Como a própria autora definiu no texto de apresentação, trata-se de “uma canção de ninar com graves do Brooklyn, balanço brasileiro e metais dos dois hemisférios”.
Enquanto aponta para novos caminhos, Adi Oasis segue colhendo frutos. Com dois álbuns e dois EPs na bagagem, além de reeditar em vinil seu álbum mais recente — uma espécie de fotografia do momento em que ganhou o mundo, muito mais combativo e afiado do que o presente — ela também prepara uma série de apresentações no verão europeu. Antes de embarcar nesta jornada, em conversa com o Musicalidade, Oasis resgatou outras memórias brasileiras dentro e fora do palco. Fã de Djavan, a artista explicou sua relação com os idiomas, relembrou impressões do público brasileiro e refletiu sobre o lugar que ocupa ao empunhar, com perícia, um instrumento tão potente como o baixo.
Musicalidade: Foi difícil cantar em português?
Adi Oasis: Para falar a verdade, não sei dizer se de fato ficou ruim ou não. Não tenho um conhecimento profundo da língua, mas sempre me interessei por idiomas em geral. Falo francês, um pouco de espanhol. Depois da música, esta é a minha grande paixão. Então, posso dizer que sempre quis fazer algo em português. O meu algoritmo no Instagram está lotado de páginas de aprendizado de idiomas, questões gramaticais. Acho que, exceto eu e você, as pessoas estão interessadas em outras coisas… (risos)
Musicalidade: Nada disso. Muitos artistas estrangeiros têm lançado faixas, ou até mesmo álbuns, em português. A que atribui o interesse?
Adi Oasis: O som do idioma é interessantíssimo. Eu também cantaria em japonês, se pudesse. Mas, no caso do português, o que me levou a trabalhar com o idioma, sem dúvida, foi a conexão que estabeleci com o público daí. Fui fazer uma série de shows em novembro do ano passado e me dividia entre o estúdio, a vivência cotidiana e os shows. Tenho ido bastante ao país e foi como se nascesse uma história de amor natural. Eu sou quase brasileira (diz, no idioma). Não pensei algo do tipo ‘Olha, quero fazer uma música em português’. E sim, ‘Quero fazer música com músicos brasileiros’. Amei a experiência.
Musicalidade: Ouvir música significa estar em contato com processos muitas vezes alquímicos. Acredita nessa ideia de que o músico deve perseguir a harmonia perfeita?
Adi Oasis: Sabe, eu gosto dessa ideia de ‘buscar a harmonia perfeita’. Acho mesmo que é isso que estamos fazendo o tempo todo, seja sozinhos ou com outros artistas. E eu acho que a mágica da colaboração é o maior ingrediente que a gente não consegue controlar. Às vezes, não funciona – e é importante quando não funciona, porque aí você sabe, quando funciona, que não é só um desejo ou uma ilusão. Você sabe que aquilo está realmente acontecendo. E quanto mais experiências você tem colaborando com outros criadores, com mais facilidade consegue reconhecer quando algo se faz realmente especial. Tive muita sorte com colaborações em algumas das minhas maiores músicas. Acho que é porque eu também sou baixista — tem algo sobre os baixistas e o nosso papel no palco: fazer todo mundo soar bem. E, além disso, foi por essa mesma razão que me tornei produtora, porque gosto desse papel, acho que isso tem me ajudado bastante no processo como um todo.
Musicalidade: Num sentido oposto, como lida com as imperfeições? Considera elas parte dessa mesma magia à qual nos referimos?
Adi Oasis: Eu toco notas erradas o tempo todo, especialmente se eu estiver cantando e tocando baixo. Admito que, às vezes, eu erro e não me importo — não estou buscando a perfeição, estou buscando uma sensação quando se trata de tocar ao vivo. Mesmo no estúdio, muitas vezes eu fico com a primeira gravação. Tudo está relacionado a capturar um momento, essa é a minha definição de criar música. Com frequência, o momento chega com um microfone ruim ou numa nota de voz, e você pode até tentar refazer, mas não é a mesma coisa. Nosso trabalho é se colocar nessa posição de recipientes e antenas — a gente só recebe. O resto dá pra fazer depois, mas uma vez que você tem esse componente mágico em mãos, não dá pra recriar certas coisas.
Musicalidade: Você fez uma série de shows no Brasil, tocando, inclusive, com a Luedji Luna em São Paulo. É tão divertido assim mesmo tocar para as nossas plateias? Quais memórias carrega consigo?
Adi Oasis: Eu diria que o que mais ficou comigo não foi só me apresentar para o público brasileiro, mas observá-lo também assistindo a um show. Toquei num festival no Rio, o Queremos, e tive a sorte enorme de subir ao palco logo antes do Djavan. Senti duas coisas muito especiais que fizeram com que me apaixonasse pelos fãs brasileiros. A primeira foi que a maioria das pessoas na plateia não me conhecia, e eu senti que elas estavam me dando uma chance. Vi elas se apaixonando pelo meu show e ficando tipo: “Quem é essa garota?” Depois, simplesmente, embarcaram comigo. Passadas umas cinco músicas, algo do tipo, foi como se dissessem: ‘Te adotamos, estamos aqui pra te amar.’ Acho que isso é algo muito específico do público brasileiro, veem você com o coração aberto e o artista só precisa agarrar essa oportunidade. Mais tarde, vi Djavan em cena e pra mim foi uma loucura. Vi muitas pessoas assistindo ao show e era um público multigeracional. O nível de respeito que existe pela música e pela cultura musical que transcende gerações no Brasil é de tirar o fôlego. Foi realmente muito bonito.
Musicalidade: O baixo é o seu instrumento favorito. Por quê se tornou tão importante pra você, qual relação trata de estabelecer com ele hoje?
Adi Oasis: Esse é o tipo de pergunta que eu levaria pra minha sessão de terapia (risos). Tem sido uma conexão tão profunda… às vezes, tenho uma relação meio de culpa com o instrumento, justamente porque eu não estou só tocando — estou fazendo muitas outras coisas. Não sou só uma musicista que está por aí praticando o dia todo. Especialmente agora que sou mãe, se eu tenho uma hora livre, penso: ‘O que eu vou fazer? Vou tocar baixo? Vou escrever uma música?’ Todos esses momentos me fazem perceber que nem sempre escolho o baixo primeiro, mas quando estou no palco, ele é meu primeiro e melhor amigo, não importa o que aconteça.
Musicalidade: Ouvindo o seu trabalho me lembrei imediatamente de duas mulheres que admiro imensamente. Laura Lee, do trio Khruangbin, e Gail Ann Dorsey, que durante anos integrou a banda de David Bowie, Lenny Kravitz. O baixo é um instrumento ainda muito associado aos homens… Quão significativo acha que é para meninas jovens que pretendem aprender a tocar vê-la em cena?
Adi Oasis: Sou amiga da Laura e posso te dizer que ela é a pessoa mais legal que eu conheço. Vejo que as coisas vem mudando, existe uma diferença entre quando comecei na cena e agora, principalmente, por causa do crescimento das redes sociais. Hoje, as pessoas têm muito mais acesso à gente do que tinham antes. E isso pode ser um pouco complicado, às vezes, porque tem músicos que são mais influenciadores do que músicos, sabe? Mas tudo bem. Eles não tiram nada de mim. E ainda acho que continua sendo marcante ver uma mulher tocando um instrumento.
Musicalidade: Meu tema favorito em entrevistas é composição. Como funciona o seu processo? Parte de uma imagem, de uma situação, de um sentimento?
Adi Oasis: Sabe, eu sou como uma torneira que ou está fechada, ou está aberta. Se estou em turnê, não consigo compor ao mesmo tempo, preciso estar no modo certo. Essa é a antena de que eu falava antes. Uma vez que estou no modo de composição, tudo vira música — tudo tem o potencial de virar uma canção. As pessoas me inspiram muito, ou até o som de uma palavra. Eu preciso estar “ligada”, sabe? Ou me fecho para fazer outra coisa, ou me abro para criar canções.
Musicalidade: Suas letras versam sobre questões sociais, como feminismo e violência urbana. Muitos artistas, sobretudo na cena mainstream, parecem querer se distanciar disso. O quão relevante sente que é tocar nesses assuntos?
Adi Oasis: Agora, no momento, não é algo crucial como foi quando eu fiz o disco Lotus Glow, porque ali eu estava contando a minha história. Agora estou em um lugar diferente na minha escrita, é por isso que fiz uma música como “Cheirinho”. Eu só queria me sentir bem e fazer as pessoas se sentirem igualmente bem. Mas, naquela época, senti que era o momento de me apresentar, de honrar minhas raízes e também de falar sobre coisas que eu vivo, que fazem parte de uma experiência coletiva. E nem sempre é assim. Também não quero fazer só canções atreladas a um viés político. Eu escrevo sobre o que estou sentindo no momento. Se alguém me irritar, vou escrever sobre isso. Depende do dia. Eu tenho controle sobre o meu “lado nerd”, mas infelizmente nem todos os artistas têm essa liberdade. Todos deveriam ter.