Inspirada em matéria publicada por Igor Miranda, a discussão sobre o novo repertório solo de Bruce Dickinson abre um campo fértil de análise sobre a relação do vocalista com sua própria obra e com o legado do Iron Maiden. A decisão de incluir em sua turnê canções da banda que nunca foram tocadas ao vivo, como “Flash of the Blade” (Powerslave, 1984), não é apenas um gesto de nostalgia. É uma escolha estratégica, que sublinha o desejo de reapropriação de sua própria produção dentro de um universo coletivo que, ao longo de quatro décadas, sempre priorizou a lógica grandiosa e consensual dos clássicos do Maiden.
Enquanto o Iron Maiden mantém um setlist que privilegia hinos incontornáveis — como “The Trooper”, “Fear of the Dark” e “Run to the Hills” —, Bruce Dickinson, em carreira solo, se permite revisitar composições mais específicas, muitas vezes esquecidas pela engrenagem da banda. “Flash of the Blade” exemplifica esse olhar: uma faixa rápida, intensa, com forte vínculo pessoal do cantor, já que a letra é inspirada em sua paixão pela esgrima. A performance solo oferece ao público a oportunidade de redescobrir esse lado autoral, sem a obrigação de agradar a multidões em estádios.
O anúncio de que tocará “Revelations” no Brasil, em homenagem aos 40 anos da histórica apresentação do Maiden no primeiro Rock in Rio, reforça a ideia de liberdade criativa. Ao afirmar que a música é “sua” e que pode fazer alterações se quiser, Dickinson marca território sobre sua contribuição individual. Essa postura representa uma ruptura importante: se no Maiden a criação é diluída na coletividade, em sua carreira solo ele pode moldar e reinterpretar o repertório de acordo com sua visão atual, sem as amarras de uma máquina global de entretenimento.
Esse processo cria uma espécie de “arqueologia afetiva” para os fãs. As músicas escolhidas por Dickinson para os shows solo não competem com os grandes clássicos da banda, mas funcionam como relíquias de catálogo, resgatadas para uma plateia mais íntima e atenta. A experiência de assistir a “Flash of the Blade” ao vivo, por exemplo, não é apenas sobre ouvir uma faixa antiga: é sobre testemunhar a forma como o artista enxerga hoje sua própria obra. Esse gesto aproxima os shows de uma conversa pessoal entre Bruce e seu público.
Separar o que é Bruce Dickinson do que é Iron Maiden não significa romper com o grupo, mas destacar o peso de sua assinatura na história da banda. Ao delimitar os repertórios, Dickinson fortalece tanto o mito coletivo quanto seu legado individual, oferecendo duas experiências complementares para os fãs. É como se sua carreira solo funcionasse como um “laboratório criativo”, onde ele pode revisitar e remodelar seu passado, enquanto o Maiden segue como a grande máquina global de heavy metal.