A publicação do livro Cuícas Imortais: de João Mina a Boca de Ouro, de J. Muniz Jr. e Paulinho Bicolor, marca um momento raro em que a música popular brasileira olha para dentro e reconhece um dos instrumentos mais característicos do samba: a cuíca. Para muitos leigos, a cuíca pode soar como um detalhe curioso, aquele som inconfundível em uma roda de samba. Mas a obra mostra que, por trás desse timbre único, existe uma história de mestres, inventividade e resistência cultural que moldaram o próprio gênero.
A importância do livro está justamente em trazer à luz os “operários do samba” — músicos que, sem a projeção dos compositores ou intérpretes, sustentaram o ritmo e inovaram com técnicas próprias. Nomes como João Mina, Oliveira, Ministrinho e Boca de Ouro ajudaram a construir o que hoje reconhecemos como a identidade sonora do samba, mas ficaram invisíveis na narrativa oficial da música brasileira. Ao resgatar essas trajetórias, Muniz Jr., historiador do samba e referência intelectual, e Bicolor, músico e pesquisador apaixonado pelo instrumento, reconstroem um elo perdido da nossa cultura.
Além do resgate histórico, a obra também é um gesto de justiça social. Ao situar a cuíca e seus mestres no centro da narrativa, o livro questiona por que certos personagens são eternizados e outros permanecem esquecidos. Essa inversão de foco não só valoriza o trabalho dos cuiqueiros, como também abre espaço para uma discussão mais ampla sobre a forma como o samba, patrimônio cultural do Brasil, ainda guarda hierarquias internas de prestígio e memória.
Para quem não tem familiaridade com o universo do samba, Cuícas Imortais é uma porta de entrada acessível e envolvente. Ele mostra como um instrumento aparentemente secundário pode, na verdade, carregar histórias de ancestralidade, criatividade e identidade coletiva. Mais do que uma obra de nicho, é um convite para repensar a própria noção de patrimônio cultural e reconhecer que, muitas vezes, são os sons menos óbvios que mantêm viva a alma de um povo.