Essenciais Musicalidade: Letrux em Noite de Climão – Letrux

Lançado em 2017, o disco marcou a cena independente com lirismo notívago, ousadia estética e hits que se tornaram hinos de uma geração

Quando a cantora e escritora Letícia Novaes decidiu assumir a persona Letrux, o Brasil vivia dias obscuros em sua política. Após impichar a mineira Dilma Rousseff (2010-2016), primeira presidenta reeleita democraticamente e vítima de um golpe orquestrado por deputados de uma extrema-direita em formação, viu-se que quem ditava o tom do momento era a bizarrice. Se esta fosse representada por uma cor, certamente, seria o vermelho, regente de uma mesma paleta que representa, aos gritos, paixão, mas também alerta e desconforto.

Tais sentimentos estão plasmados de múltiplas formas e intensidades em Letrux em Noite de Climão (2017), trabalho que inaugurou um novo momento na carreira de Novaes. Conhecida na cena indie, ela já tinha uma trajetória como atriz e vocalista, estando à frente de bandas como Letícios e Letuce — todas elas com a peculiaridade de serem batizadas a partir do radical Let, uma brincadeira que mescla seu nome aos pormenores da gramática de língua inglesa. Assinando a coprodução ao lado da dupla de produtores Arthur Braganti e Navalha Carrera, membros fixos de sua banda, Letícia compôs um LP que marcou a cena nacional independente nos anos 2010, sendo o projeto de maior sucesso do ano em que foi lançado. É também o mesmo que, curiosamente, acabou sendo reprovado em todos os editais aos quais se inscreveu para financiamento.

Como alternativa, surgiu a possibilidade de realizar uma campanha de arrecadação coletiva, bem-sucedida — um exemplo prático de adaptação de planos, tal qual a relatada, em sentido poético, nos primeiros versos da faixa “Hypnotized”. Nesse hit embalado pela percussão, que se desdobra entre jogos de palavras e flertes com trava línguas à la Fernanda Abreu e Fausto Fawcett, ela diz: “Eu só queria dormir e acabei me apaixonando / Eu só queria me apaixonar e acabei dormindo”.

Despida como se num mergulho livre ao mar, a obra se divide em 11 capítulos, funcionando como uma jornada notívaga e fragmentada de reflexões sóbrias e, ao mesmo tempo, delirantes, em queda livre. Vestida para matar, Letrux entra na noite com seus olhos exageradamente delineados a fim de se recolocar no jogo. É o que afirma na faixa de abertura: “Bota na tua cabeça que isso aqui vai render / Tatua na tua pele que eu não vou passar batida na festinha”. Em seguida, cruza o salão a caminho das ondas, desintegrando-se na vaporosa “Coisa banho de mar”, uma de suas incursões mais libertárias no reconhecimento do fracasso sentimental. Neste mesmo ensejo é que segue viagem, alternando velocidades e transpondo em música uma série de desejos tão platônica quanto universal.

A canção “Ninguém perguntou por você”, por exemplo, o grande sucesso do álbum, funciona como um presente da deusa Clio, detentora da criatividade e inspiração infinitas. Como revelou Novaes em diversas entrevistas, toda a letra se materializou durante um trajeto de metrô que fazia pela cidade de São Paulo, obrigando-a a estendê-lo conforme novos versos surgiam. Fruto desse exercício, fantasias múltiplas vão ganhando vida na mente de alguém que, em momento oportuno, sepultou um romance imaginário — o que não a impede de evocá-lo a cada minuto. Já “Flerte revival”, um poema ilusório e catártico, reverencia as interpretações da saudosa Liana Padilha (1964–2024), criadora do duo NoPorn, um divisor de águas na cena underground latino-americana. À sua maneira, aqui Letrux busca nas formas das artes plásticas o tato para confessar a paixão de uma noite.

No meio do percurso, antes de cravar o refrão feroz de “Amoruim” (“Até o amor ser bom, ele é tão ruim”), a artista abre espaço em uma trinca do desejo sáfico em “Que estrago” e “Puro disfarce”, esta última com a desfaçatez e presença inebriante dos vocais de Marina Lima. O gran finale, por sua vez, fica por conta de duas faixas das mais irregulares, ainda que igualmente interessantes no percurso de Novaes: enquanto “Além de cavalos” avacalha hábitos de uma elite jeca e temerária, que não apenas se dá ao luxo de fazer tatuagens de casal, mas também as promove entre os desfavorecidos, perdidos na ilusão das paixões fugazes e na tragédia de desfazê-las; “5 years old” se entrega à poesia em seu estado mais brutal. Ao fazer desdobrar a obra do poeta e.e. cummings, em que a infância é protagonista, o ouvinte fica com a sensação de ter vivido um ciclo completo, em que o amanhecer nada mais é do que uma ressaca deliciosa, capaz de finalmente, passadas as tribulações de uma mente inquieta, colocar-nos pra dormir. Amanhã, na visão de Letrux, não será outro dia, e sim outra noite.