Os fãs latino-americanos da cantora e compositora Fiona Apple terminaram a tarde de 20 de novembro de 2012 um tanto incrédulos. Sem rodeios, ela publicaria em seu perfil no Facebook o fac-símile de uma carta. Com honestidade e uma caligrafia nem tão legível assim, o manuscrito trazia a notícia do cancelamento daqueles que seriam seus primeiros shows no Brasil. “Tenho uma cadela chamada Janet e ela está doente há quase dois anos, com um tumor no peito que cresce lentamente. Não posso ir, não agora”, escreveu.
Apple passaria pelas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre na semana seguinte, cantando o repertório do álbum The idler wheel…, lançado naquele mesmo ano. Na sequência, antecipou-se às críticas e foi categórica ao destacar, em pé de igualdade, o valor existencial de animais e seres humanos. “Nos dias de hoje, nós nos apavoramos diante da morte de um ente querido. É a verdade feia da vida, que nos deixa assustados e solitários. Gostaria que pudéssemos apreciar melhor os momentos que marcam o fim de uma existência”, prosseguiu. Ela nunca viria ao país e seus shows, em geral, ficariam mais escassos a cada ano.
Do pouco que se sabe sobre sua vida, estão registros audiovisuais feitos pela amiga, Zelda Hallman, e depois divulgados em redes sociais como Tumblr e Instagram. Os cães quase sempre a acompanham. Símbolo desse amor, a cadela Janet, de fato, morreria um pouco depois na companhia de sua tutora, que permaneceu nos Estados Unidos ao seu lado. Vista de perto, a atitude, que desembocou em uma onda de comentários responsáveis por, inclusive, ridicularizá-la, lança luz sobre algo raro na indústria: a coerência. Autora de todas as composições que integram seus cinco discos de estúdio, Apple construiu, em quase trinta anos de carreira, uma obra tão íntima quanto bem fundamentada em princípios. Seu trabalho de artesania, naturalmente, demanda posturas firmes em relação a certas pressões comuns nos bastidores.
Famosa do dia para a noite, ela criticou as imposições da cultura pop no palco do VMA 1997, em um episódio canônico. Um pouco depois, decidiu não lançar obras em curtos espaços de tempo e fugiu do estereótipo de jovem menina sexualizada, um clássico daquela década. Também seria fundamental para seu processo criativo obter o controle de como e o quê gostaria de contar — provavelmente, cicatrizes derivadas do traumático processo de gravação de Extraordinary machine (2005). Já finalizado, o disco teve de ser refeito aos moldes da gravadora e só saiu 6 anos após o elogiado When the pawn… (1999).
Desinteressada de formalidades, deixou de ir, inclusive, à cerimônia de entrega do Grammy Award em 2021, quando recebeu dois troféus. Como Sade, Kate Bush e outros nomes referenciais da cultura, Apple abdicou de pompas e holofotes, preferindo passar seu tempo com amigos próximos, inclusive não humanos. Sua paixão pelos cães parece, inclusive, ter influenciado o processo de composição da faixa “I want you to love me”, unanimidade entre os críticos como uma das belas canções de amor dos últimos tempos. Em gravações amadoras feitas há mais de uma década, é possível ver a artista interpretando a música, ainda sem uma gravação oficial, em tom sombrio.
Escolhida para abrir o álbum Fetch the bolt cutters (2020), seu mais elogiado projeto e aquele que, apesar de ter nascido em um momento histórico, soube atravessar o tempo esquivando-se de associações diretas com os fardos da pandemia de Covid-19, a artista embarca em uma digressão que tem como destino o encontro de um amor elementar. Este se divide entre pegadas, partículas corporais e a elasticidade do tempo, uma composição que parece ter como produto sons estranhos. Na língua dos cães, soa como uma declaração.
Mais tarde, haveria de revelar à revista Pitchfork: “Outro dia, eu estava pensando na cachorra morta da minha irmã, Ada, e percebi que, no final dessa música, estou absolutamente imitando a Ada. Sempre que minha irmã ficava fora e depois voltava, Ada ficava tão animada que soltava um latido agudo. E eu costumava fazer isso o tempo todo quando via minha irmã, como quem diz: ‘Estou feliz em te ver.’ Então, talvez tenha sido algo subconsciente: “Você voltou. Eu te amo.” Para Apple, o amor deve ser lido como algo genuíno, e quem melhor pode ensinar algo a esse respeito são os animais.