Quem foi Gustavo Cerati, poeta do rock argentino

Morto há 11 anos, obra do músico segue como referência da ponte entre poesia e canção pop

Quando a banda argentina Soda Stereo subiu pela última vez ao palco do Estádio River Plate, em setembro de 1997, cerca de 65 mil pessoas se empurravam para ver em cena Gustavo Cerati e os amigos, Zeta Bosio e Charly Alberti. É bem verdade que o trio retornaria, uma década mais tarde, para uma derradeira série de apresentações. Em todas as ocasiões, a figura do vocalista eclipsava, naturalmente, os outros dois integrantes. No entanto, naquele River, apesar de empunhar a guitarra com firmeza, Cerati já não parecia mais tão entusiasmado com o ruído sedutor das multidões.

O status de rockstar, que permitiu ao trio não apenas emplacar sucessos como “En la ciudad de la furia”, “Persiana americana” e “Té para 3”, mas também serem os primeiros roqueiros latino-americanos a fazer grandes turnês internacionais, acabou instigando o cantor e compositor bonaerense a se voltar para a própria introspecção. Vítima de uma parada cardiorespiratória que o tirou do coma após quatro anos de um sono profundo, provocado por um acidente vascular cerebral, Cerati morreu aos 55 anos. Isto é, não sem antes encontrar nas minúcias e em uma peculiar escolha de palavras o caminho necessário para dar vazão aos seus pensamentos mais densos. É isto que, hoje, o mantém vivo no imaginário coletivo, associando-o à figura do poeta.

Para ele, aliás, o fim do amor era o tipo de coisa que “simbolizava sentir-se mais vivo”. Sua estreia como solista, Amor amarillo (1993), chegou na esteira de um outro trabalho, de viés experimental. Com Daniel Melero, compôs “Colores Santos”, um álbum quase etéreo em que a principal faixa, “Vueltas por el universo”, assume um caráter premonitório de sua partida precoce. Mais maduro, seja pelos anos de experiência com o Soda (que se esfacelou em 1995) ou pela elaboração lenta que atribuiu às suas ideias, o músico transformou o primeiro disco em uma sequência de declarações de amor. A princípio, estavam direcionadas à então esposa e musa de incontáveis canções, a modelo chilena Cecília Amenábar.

Com ela, Cerati dividiu os vocais em “Te llevo para que me lleves”, além de aparecerem juntos em um videoclipe em que exibem um barrigão de gravidez já na fase final da espera por seu primogênito, Benito. A filha Lisa, que agora também ataca como cantora, ganharia uma canção homônima, das mais sentimentais, e feita anos antes de nascer, em que diz: “Siempre fue divertido correr/dejar a este mundo detrás (Sempre foi divertido correr/deixar este mundo para trás”).

As ruas e as canções que fazem de Buenos Aires um espaço sui generis na América Latina também estão lá. Do grupo Pescado Rabioso, encabeçado por Luis Alberto Spinetta, surgiu uma regravação do clássico “Bajan”. A Avenida Presidente Figueroa Alcorta, que transpassa a cidade como uma cicatriz se vista de cima, bem como abriga espaços icônicos como o Museu de Belas Artes, a Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires e a antiga residência dos Cerati-Amenábar, também foi transformada em personagem, por um eu-lírico de voz nasalada e marcado eternamente pela melancolia.

Tônica similar permeia Bocanada (1999), um disco que funciona como prenúncio do divórcio. Feito nas penumbras do mítico estúdio Casa Submarina, o material vai das composições mais existenciais que preenchem seu lado A até o instrumental puro e noturno, que leva o lado B a flertar com as pistas em um “passeio imoral”. No máximo tensionamento do que se entende por experimento, o artista trilhou seu percurso apoiado em uma coleção superlativa de samples que vão de Focus e Elvis Presley a Eumir Deodato, além de ter produzido e tocado quase todos os instrumentos (além da voz, teclado, baixo, sintetizador e guitarra são seus). Saíram daí algumas de suas faixas mais premiadas como “Tabú”, “Beautiful” e “Puente”, esta última vencedora do Grammy Latino.

A disposição linear e organizada das narrativas não seria bem o forte do trabalho seguinte, Siempre es hoy (2003). Neste LP, que evoca a companhia de Charly García, ao piano, nas faixas “Vivo” e “Sudestada”, Cerati consuma de vez o fim de sua relação com Amenábar. Aqui, ele guia o ouvinte pela mão em direção aos confins de uma estética que, apesar de pender para o alternativo, ainda consegue romper a bolha através de hits radiofônicos como “Cosas imposibles”, “Karaoke” e “Artefacto”. É assim que acessamos suas percepções íntimas do romântico e da finitude, tema este que perpassará toda sua produção daqui em diante.

Ao se dedicar a um rock mais clássico em Ahí vamos (2006), álbum que rendeu algumas de suas composições mais belas como “Crimen” e “Medium” — onde fala sobre uma “estranha sensação de não pertencer a este mundo” —, Cerati se consagrou de vez como um mestre da canção popular, parecendo a cada verso, não raro pichados nos muros e paredes de Buenos Aires, preparar o terreno para sua despedida. Em múltiplas oportunidades, chegou a dizer que o LP Fuerza natural (2009), seu último trabalho, era o que mais lhe dava orgulho. Na faixa título, afirma: “Puedo equivocarme y tengo todo por delante, nunca me sentí tan bien (Posso me equivocar e tenho tudo pela frente, nunca me senti tão bem)”. Na homogeneidade dos sons e das letras, deixa a impressão de ter alcançado a fórmula perfeita de uma alquimia que, mesmo na admissão de imperfeições, parece inalcançável.