Robert Crumb e o retrato do Blues em quadrinhos

Um livro que preserva memórias musicais e revela tanto os músicos quanto o próprio autor

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Quando lançou o livro Blues, em 1995, o quadrinista norte-americano Robert Crumb não apenas reafirmou sua posição como um dos maiores nomes dos quadrinhos underground, mas também se revelou um cronista apaixonado pela música que o acompanhou desde jovem. A obra reúne histórias em quadrinhos, retratos e textos biográficos de nomes que moldaram o blues, um gênero que nasceu da experiência da comunidade negra nos Estados Unidos e que, mais tarde, se tornaria matriz de quase toda a música popular do século XX.

Em Blues, Crumb reconstrói as trajetórias de artistas como Charley Patton, Skip James, Jelly Roll Morton, Blind Willie McTell e Robert Johnson, nomes muitas vezes esquecidos fora dos círculos de colecionadores e pesquisadores. Através de HQs curtas e ilustrações detalhadas, ele cria perfis que oscilam entre o documental e o caricatural, trazendo à tona não só a sonoridade, mas também a dureza da vida desses músicos, que enfrentaram pobreza, racismo e anonimato. O traço denso e expressivo dá corpo a narrativas que misturam reverência e ironia, compondo quadros que capturam o espírito de uma época e a aura desses artistas, quase sempre envolvidos em histórias de marginalidade, improviso e resistência.

O livro vai além da homenagem visual. Ele funciona como uma espécie de arquivo gráfico, ao resgatar e preservar a memória de músicos que, em muitos casos, nunca tiveram espaço nos registros oficiais da indústria fonográfica. Crumb, colecionador obsessivo de discos em 78 RPM, coloca no papel aquilo que também era sua paixão pessoal: a música que moldou sua sensibilidade e que, segundo ele, oferecia autenticidade em contraposição à cultura de massa.

Nascido na Filadélfia, em 1943, Robert Crumb começou sua carreira nos anos 1960 como um dos expoentes do movimento de quadrinhos underground nos Estados Unidos. Criador de personagens icônicos como Mr. Natural e Fritz the Cat, ganhou notoriedade por seu estilo provocador, cheio de crítica social, humor ácido e representações polêmicas. Ao longo da vida, cultivou uma relação estreita com a música. Além de desenhar capas de discos, também tocava banjo e se envolveu em projetos musicais, como a banda Cheap Suit Serenaders, dedicada a recriar sonoridades do jazz e do blues tradicionais.

Sua obra sempre oscilou entre a crítica feroz à sociedade de consumo e um olhar quase antropológico para a cultura popular. Blues é um reflexo dessa faceta: um artista que, ao mesmo tempo em que questionava os excessos do mundo moderno, buscava no passado e em suas raízes sonoras uma forma de preservação cultural.

Ao reunir histórias em quadrinhos e memória musical, Crumb criou uma obra que transita entre a literatura gráfica e a historiografia cultural. Para muitos leitores, foi o primeiro contato com nomes fundamentais do blues. Para outros, é uma prova de que os quadrinhos podem funcionar como meio de preservação histórica. Mais do que um livro sobre música, Blues é uma janela para entender o próprio Crumb, um artista movido pela contradição entre o niilismo e a devoção, que encontrou no blues um espelho de sua própria visão de mundo, marcada pela dor, pela ironia e pela intensidade emocional.