Quando cantou o verso “Jesus died for somebody sins but not mine (Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus)”, extraído do poema “Oath”, a cantora e poeta norte-americana Patti Smith redefiniu os vínculos existentes entre a poesia e o rock. Lançada há 50 anos, a obra se calca na beleza estranha das dicotomias, uma combinação que quase sempre o leva a aparecer no topo das tradicionais listas de melhores álbuns de todos os tempos — ou pelo menos daquelas que inspiram algum respeito.
Suas oito canções originais funcionam como uma fotografia da cidade de Nova York na década de 1970, mas, sobretudo, como um atlas pessoal, que se articularia ao longo dos anos subsequentes para moldar a obra de Smith, fã convicta de Arthur Rimbaud (1854-1891), entre outros poetas malditos. Temas seminais como religião, morte, família, sexo e lisergia são abordados pela artista sob uma perspectiva carregada de frescor. A começar por sua própria condição de mulher, que lhe permitiu, entre outras coisas, subverter o eu-lírico de “Gloria”, clássico do grupo irlandês Them. Aqui, ele não apenas é adaptado com versos autorais, mas também projeta sua voz como a de uma neo-trovadora, uma astuta rockstar em ascensão.
É célebre a passagem do livro “Só garotos” (2010) em que Smith relata ter ido assistir a um show da banda The Doors, no fim dos anos 1960. Antes de se consagrar como um dos principais rostos da saudosa casa de shows CBGB, ela revelaria ter sentido “uma estranha sensação ao ver seu vocalista”, Jim Morrison (1943–1971). Em suas palavras, “enquanto todo mundo à minha volta parecia em transe, fiquei observando cada movimento dele em um estado de hiperconsciência fria. Lembro-me dessa sensação mais que do próprio show. Senti, ao vê-lo, que eu poderia fazer aquilo”, escreve. “Não havia nada na minha experiência que pudesse me fazer achar que isso, algum dia, seria possível, mas guardei essa opinião. Ele exalava uma mistura de beleza e autodepreciação, e uma dor mística, como um São Sebastião da Costa Oeste”.
Os lamentos que partem do piano de Richard Sohl (1953–1990) e da guitarra, muito em breve frenética, de Lenny Kaye, seu amigo histórico e “Sancho Pança”, conduzem seu discorrer sobre a culpa religiosa. Uma herança da mãe, testemunha de Jeová? No poema “Land: horses / land of a thousand dances / la mer”, uma de suas mais brilhantes criações, Smith narra a jornada exuberante e tempestuosa de Johnny, um rapaz gay e em plena descoberta, que se entrega ao sexo vislumbrando o sagrado. São 9 minutos de uma jornada que ganha tração em olhares cruzados em um hall, seguindo pelas consequências de uma visão vertiginosa, em que saltam aos olhos cavalos flamejantes. A cultura queer também voltaria a ser tema de “Redondo beach”, reggae de sabor agridoce em que descreve, em meio a um ritmo festivo, o suicídio de uma namorada.
No que diz respeito à família, desvelam-se ainda outros dois momentos curiosos. Em “Free money” e “Kimberly”, Smith se dirige ao próprio núcleo ao caminhar entre a infância pobre e a ruína imaginativa. Na primeira delas, relata ao ouvinte os planos feitos pela mãe, a sonhadora Beverly, caso ganhasse na loteria — mesmo que, sem dinheiro o suficiente, ambas nunca fizessem apostas. Na faixa seguinte, a artista se voltava para a irmã mais nova a fim de descrever o apocalipse. Com certa arrogância intelectual, diz: “Little sister the sky is falling / I don’t mind, I don’t mind (Irmãzinha, o céu está desabando / Eu não ligo, eu não ligo)”.
Na intimidade, Smith também viveu hecatombes. Como sobrevivente, restou-lhe a sorte de uma vida longa e saudável, ante o fardo de ver amigos sucumbirem a overdoses, enfermidades e tragédias, entre as quais se inclui a da AIDS. Foi ela quem lhe tirou o amigo e parceiro de vida, Robert Mapplethorpe (1946–1989), mas também o ídolo Jimi Hendrix (1942–1970). É para ele, dono do estúdio Electric Lady, onde as gravações de “Horses” ocorreram, que se destina “Break it up”.
No poema “Elegie”, a poeta recorre à canção “1983 (A merman I should turn to be)” a fim de parafraseá-lo: “Acho triste, muito ruim, que nossos amigos não possam estar conosco no dia de hoje”. Nada, entretanto, é tão monumental quanto a prolixidade de “Birdland”, narrativa que se farta do que há de mais beat e épico. Inspirada na história do psiquiatra Wilhelm Reich (1897–1957) e do pai, cientes da iminência da morte, esta odisseia direciona o ouvinte, de forma gradativa, a uma catarse que se encerra num balbuciar. Assim é que, entre detalhes e sons, “Horses” se revela um disco tão disruptivo quanto imagético.
Produzido por John Cale, uma das mentes pensantes do Velvet Underground, o LP tem a integralidade de suas composições assinada por Patti Smith, que em novembro de 2025 lança seu livro definitivo de memórias prometendo histórias de bastidores. “Bread of angels” (ainda sem tradução para o português) deve ecoar outra vez sua importância para os anais do rock, vista sem qualquer surpresa por apreciadores do que escreveu e cantou nos discos “Wave” (1978), “Dream of life” (1988), “Gone again” (1996) e “Trampin” (2004), entre outros. No fim das contas, algo haveria de fazer sentido quando ousou dizer, no livro “Devoção” (2019): “Sou só uma escritora”. A adoração às palavras é o que a levaria tão longe, inclusive, a este futuro/presente de consagração, cinco décadas mais tarde.